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José Cardoso Pires - Lavagante. Encontro desabitado

Por Carina Infante do Carmo, publicado em 19.9.2008 na secção Recensões Críticas

José Cardoso Pires, Lavagante. Encontro Desabitado. Colecção Mil Horas de Leitura. Lisboa: Edições: Nelson de Matos, 2008.

A publicação de Lavagante. Encontro Desabitado foi a forma que Nelson de Matos encontrou para, no décimo ano da morte José Cardoso Pires, lhe prestar homenagem e inaugurar o catálogo de novo projecto editorial, que leva o seu nome próprio. Assim o lemos numa nota não assinada que antecede a novela. Nelson de Matos, é sabido, foi editor de Cardoso Pires na Moraes Editores e nas Publicações Dom Quixote, pelo que a iniciativa de o voltar a editar constitui um prolongamento dessa função de mais de trinta anos e da própria assinatura de Cardoso Pires. Fê-lo com o apoio da mulher e das filhas do escritor; uma delas, Ana Cardoso Pires, assumiu a revisão e fixação do texto que teve diversas versões manuscritas e dactilografadas, conhecendo-se um esboço dado à estampa na revista O Tempo e o Modo, em Dezembro de 1963.

Lavagante sucede a outro póstumo de Cardoso Pires, Dispersos I (2005), onde se reunira material publicado em periódicos, prefácios a livros e catálogos de exposições. Já aí uma nota ao leitor, subscrita pela Dom Quixote, sugeria os limites da decisão de editar aquela compilação, no pressentimento de que o escritor não tomaria tal iniciativa, pelo seu conhecido perfeccionismo. O livro Lavagante coloca de novo o problema da intervenção editorial que transforma um texto em livro, promovendo uma ressurreição celebratória de José Cardoso Pires. Trata-se, afinal, de um reencontro induzido com o público do escritor atraído pela raridade anunciada de um quase inédito, pela autoridade do editor e por marcadores habituais no paratexto da figura de autor: uma fotografia de Cardoso Pires na contracapa, o fac-símile de duas páginas manuscritas do texto, reproduzidas na abertura do livro, que dão prova material de uma das suas versões. Há ainda o logótipo do nome do escritor, fixado como emblema autoral desde os tempos da Moraes e agora reproduzido na badana esquerda do livro.

No JL de 23 de Abril de 2008, Manuel Frias Martins identificou este gesto de autoria induzida como «o resgate de uma falha autoral que é ao mesmo tempo redenção de um argumento literário e ratificação de um lugar canónico». Mesmo se a considera obra menor, Lavagante é, para o crítico, um achado que permite reconstituir o método de trabalho e um momento do processo criativo do escritor, entre 1963 — ano de Jogos de Azar e O Hóspede de Job — e, segundo tudo indica, 1968, quando sai O Delfim. Confirma, então, o relevo do editor que no paratexto exibe a marca histórica do texto e reactiva a função autoral.

Não faço aqui profissão de fé biografista, mas tenho no autor um dado interpretativo essencial na comunicação literária: ele é o agente elocutório de um acto performativo primeiro, ajustado a códigos literários e práticas sociais e simbólicas que determinam a instituição literária. Com eles se avançam depois origens possíveis para a figura da autoria, seja ela individual, colectiva, anónima, despersonalizada, impessoal ou alterizada. Ora, a edição de Lavagante explora o efeito de presença da assinatura consagrada de Cardoso Pires, do conjunto da obra e do seu sucesso crítico, o que faz do livro um meio de reminiscência de um autor falecido. A esse facto não será alheio o êxito que a obra granjeou entretanto. Vem, por isso, ainda mais a propósito a metáfora fúnebre que Derrida associa à assinatura autoral: Lavagante lembra um epitáfio que restaura a voz e o nome do autor, ressoando em eco na voz do leitor, num encontro que se quer habitado.

Lavagante é uma história de predação, política e amorosa, num país imobilizado. Recompõe o universo masculino marialva; encena os bloqueios de certa oposição anti-salazarista, desencantada pelo Pós-Guerra, pela fraude eleitoral de 1958 e, naturalmente, pela repressão prolongada da moral católica, da polícia política e da Censura. «Estamos em plena Idade Média, com astronautas a voar por cima de nós» (p. 43), sintetiza Cecília, a jovem enigmática («a rapariga que se vê ao espelho e que sabe calcular», p. 60) que, em plena Crise Académica de 1962, atrai Daniel, médico solidário com os estudantes perseguidos, e que dubiamente faz lograr a relação perante a prisão do amante, cedendo ao cerco sedutor de um inspector da PIDE.

A criação de ambientes apoia-se num painel reduzido de personagens. A excepção mais significativa é a descrição da Baixa lisboeta, a seguir a um 1.º de Maio sangrento que agita os habitantes da capital (capítulo XI). Se são relevantes na trama narrativa, as personagens não descolam de certo esquematismo, sob a condução retrospectiva do narrador que maneja os seus diálogos. É também graças ao narrador que se introduz, no capítulo II, a possibilidade de leitura alegórica, com potência de fábula, deste microcosmos onde se reconhecem referentes geográficos e históricos precisos.

Na obra de Cardoso Pires, a sátira política Dinossauro Excelentíssimo (1972) seguirá o filão fabulatório, de implacável traço corrosivo. Aqui a fábula do lavagante serve apenas de chave interpretativa de um quadro mais afim do realismo social. Logo no capítulo II, no diálogo entre o narrador e um jornalista amigo, ao balcão de um bar, conhecemos a história de Cecília e Daniel, sendo logo antecipada a leitura alegórica da tenebrosa paciência do lavagante: «Nesse momento, fica sabendo, o lavagante servil aparece à boca da toca do safio mas já não traz comida. Vem de garras afiadas devorar o grande prisioneiro que alimentou durante tanto tempo» (p. 16). O lavagante é, pois, um símbolo de exploração, comutável entre as personagens aprisionadas pelas circunstâncias, num país vigiado. Nas palavras desoladas do narrador, que remata a novela, fica um cenário em ruínas a enquadrar Daniel, entretanto libertado: «E vejo, ou é como se visse, uma mão espetada na noite a acenar, uma mão viciada como um trapo a assinalar ruínas» (p. 87). Um lugar sem tecto, entre ruínas, à espera, diria Raul Brandão no «Prefácio» das suas Memórias.

Inicialmente projectado para o formato romanesco, como se anunciava em O Tempo e o Modo e é relembrado na badana do livro, Lavagante ficou guardado na gaveta, porventura pelas limitações que Cardoso Pires nele encontrou e pela vontade de investir na redacção de O Delfim. Ainda assim, o encontro desabitado que dá subtítulo à novela remete para o continuum ficcional de Cardoso Pires, com as suas personagens em crise, envolvidas em redes de violência social, sedução libertina ou conflito sexual. Já em O Anjo Ancorado (1958), Cardoso Pires seguira o tema da predação da mulher, da morte e do remorso, tendo no protagonista um intelectual desencantado das suas crenças juvenis, animadas por um fascínio apressado pelo marxismo.

O adjectivo do subtítulo (desabitado) e a sombria desolação que atravessa a cidade de Lavagante comunicam igualmente com um autor pertencente à nebulosa neo-realista. Penso em José Gomes Ferreira, que, em textos de cariz autobiográfico, exercitou o apontamento sobre o quotidiano asfixiante de Lisboa, apenas compensado por revelações breves da irrealidade e do sonho; em 1960 Gomes Ferreira publicou, aliás, um conto com o título O Mundo Desabitado, se bem que reportado a um contexto escandinavo.

A sugestão deste paralelo tem vantagem para a compreensão de Cardoso Pires nos anos 50-60, sem incorrer em compartimentações rígidas da periodologia literária. A crítica tem sido unânime na ideia de que a evolução do escritor passou pela familiaridade com o neo- -realismo, demarcando-se formal e ideologicamente da sentimentalidade romântica e da raiz rural de muitas obras daquele movimento literário. O próprio o confirma em textos reunidos em Dispersos I. Não é então desajustado considerá-lo um herdeiro heterodoxo entre neo- -realistas que absorve a matriz artística anglo-saxónica e cinéfila, abrindo a pós-modernidade no romance português. Tal facto não invalida, porém, a afinidade com neo-realistas que continuam a publicar e a apurar a sua escrita naqueles anos. Casos de Alves Redol, em Barranco de Cegos (1962), José Gomes Ferreira ou Carlos de Oliveira, que reescreve a sua obra narrativa na década de 60. Por tudo isto se pode afirmar que a ressurreição textual de José Cardoso Pires dos anos 60, que a edição de Lavagante agora nos oferece, evidencia sobretudo uma valia de historicidade, no caminho de maturação do seu autor.


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