|
HOME | PESQUISA | SUMÁRIOS | HISTÓRIA | ACTUALIDADE | INFORMAÇÃO E CONTACTOS | |
|
Lídia Jorge - Combateremos a sombraPor Isabel Cristina Rodrigues, publicado em 18.5.2008 na secção Recensões Críticas Lídia Jorge - Combateremos a sombra. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007 Logo nas primeiras páginas deste último romance de Lídia Jorge, as palavras que o narrador profere a propósito do caso clínico de Lázaro Catembe (um dos pacientes do psicanalista Osvaldo Campos) constituem a pedra de toque de toda a narrativa, porquanto todo este livro parece querer investir em algo mais vasto do que na particular ficção textualizada nas suas páginas, tal como ocorre com o seu protagonista, Osvaldo Campos, que procura alcançar, relativamente aos pacientes que acompanha, não apenas a episódica zona da treva em que eles tropeçam, mas sobretudo a origem da cegueira que os atinge: «O seu trabalho dirigia-se à origem daquela cegueira e não à circunstância precisa em que o paciente tropeçava na zona da treva. A sua função não se exercia na área dos sintomas concretos, dirigia-se ao fundo das suas causas para promover a rebelião contra elas» (p. 20). Efectivamente, este romance de Lídia Jorge procura escavar para lá do concreto dos episódios vividos por algumas das suas personagens (por exemplo, os pacientes Lázaro Catembe, vítima da guerra de Luanda, o General Gomes Ortiz, a profunda voz do apocalipse, ou ainda Elísio Passos) numa Lisboa branca e subitamente virada para o rio, num quase pessoano êxtase de cais e barcos e a lembrar em muito A Cidade Branca de Alain Tanner, caminhando assim, com perfeito desassombro, em direcção à origem dessa treva vivida pela alma portuguesa no rescaldo do salazarismo e do subsequente desvario de África. Assim,
a visita que Osvaldo Campos recebe na noite do milénio, por via da
metáfora construída por Elísio Passos a partir de uma bizarra casta
de ovos envenenados («talvez o senhor não saiba que Salazar tinha
um galinheiro em São Bento…», p. 37), sublinha justamente o alcance
desse gesto psicanalítico que a instância narradora, por sobre o ombro
do psicanalista, acaba por dirigir à alma portuguesa, como que a tomar- Sem entrar exactamente em considerações de âmbito psicanalítico (as referências aos fundamentos e aos processos da psicanálise são, ao longo da obra, relativamente escassas), este romance possibilita ainda uma cuidada reflexão sobre aquilo a que poderíamos chamar o poder e os constrangimentos da palavra, nas suas específicas virtualidades de análise – a fala, o silêncio, o silenciamento e o vazio ocasional da voz, de que é exemplo a oca discursividade de Silvestre Conde (p. 355-366). O mote para esta reflexão é constituído pelo artigo que Osvaldo Campos termina de escrever na fatídica noite da passagem do milénio (fatídica porque é a noite da sua ruptura com a mulher, Maria Cristina, e porque é ainda a noite da estranha visita de Elísio Passos, com o seu delírio de ovos envenenados e que culmina depois com a morte deste). Com o título previsto de «Quanto pesa uma alma? Responde um Prático», o artigo do psicanalista reduz o peso da alma humana à fala que ela produz, estabelecendo um curioso paralelo entre a dizibilidade do espírito e o peso que ele comporta: «a alma pesa o peso do Universo e o peso da sua ausência. A leveza da sua alegria e o peso da sua dor. Pesa o que pesa a consciência de si, quando se narra. […] A alma é uma narrativa acumulada, enquanto se possui uma língua que a fala» (p. 27). Partindo deste pressuposto, poderíamos facilmente decidir do peso ou da leveza de algumas das almas que povoam o romance, como a de Maria London, perdida sob o peso do seu delírio verbal, a de Rossiana, leve na exacta inteireza da sua fala, ou como a do próprio Osvaldo, resguardada dos ouvidos alheios na leveza da fala que se abstém de produzir e que o seu assassínio definitivamente silencia. Sendo um romance (também) sobre as virtualidades terapêuticas da fala, a que o Dr. Campos aplica a metáfora do bisturi («a fala como sonda. Fazer da fala um bisturi e ir lá», p. 445), Combateremos a Sombra é ainda um romance sobre o silêncio (erigido em definitiva unidade da tragédia grega por Maria London, espécie de coro para ela) que impende sobre algumas destas almas: a própria Maria London, disfarçando o exacto sentido das suas palavras com o culto instrumental da fantasia e, mais tarde, impedida de testemunhar no inquérito da morte do Professor, mas sobretudo Osvaldo Campos, assassinado no justo momento em que decidiu transformar a sua habitual actividade de escuta no explícito discurso da denúncia, se bem que este seja depois retomado por intervenção ulterior do narrador. Todavia, o discurso verbal (o do narrador, que reabilita a palavra silenciada de Osvaldo, e o dos pacientes, que o psicanalista utiliza como sonda) encontra na lente da câmara fotográfica de Rossiana um poderoso equivalente funcional, uma vez que esta, a lente, «consegue trazer o que está no interior das coisas para fora das coisas» (p. 294). Tal como Rossiana, também Lídia Jorge realiza com este seu romance um extraordinário «TUDO O QUE VOA», utilizando palavras em vez de imagens, mas ainda assim permanecendo fiel aos ensinamentos da sua personagem: «para que se perceba que voa, tem de ter à mostra o local de onde parte. […] Daqui de onde estamos, todos vemos como a vizinha tem um vaso com uma azálea à janela. Se só fotografarem a azálea, é uma merda de usar em todos os lugares, até numa estufa de flores, não vale a pena. Mas se a azálea tiver junto dela o cortinado puído da janela da vizinha, a azálea voa, a azálea diz – Porra, eu sou a harmonia no meio das coisas rotas e puídas, eu voo» (p. 288). E o romance de Lídia Jorge deixa bem explícito o lugar de onde parte para o voo da ficção – parte de um país doente do seu próprio veneno, puído como a cortina da vizinha e onde pontua, no aqui e ali de certas almas (Osvaldo, Rossiana), a dança colorida de uma azálea. Tal como, a seu modo, escreveu João Rui de Sousa num poema do seu último livro (Quarteto para as próximas chuvas, Lisboa, Dom Quixote, 2008, p.138): «Eis que sob a escrita há um lugar / doente: / é a chuva / é a chave /são as nuvens / é este nó central de beijos exilados / (ou é a confusão há muito instilada). // Eis que sob a escrita adoeço / tal um sinal de solos pantanosos, / tal um cartaz de vida simulada, / tal um vento de guerra sem regresso. // Sim, é verdade: sob a escrita adormeço. / E, à minha maneira, combato. Durmo / e combato: pelos flancos do perigo, / os mais pesados. Até que irrompa o sol / e uma pátria de esplendor. / E o pesadelo passe.» |
© Fundação Calouste Gulbenkian, 2006-2024 |