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HISTÓRIA


desenho de Francisco Simões

David Mourão-Ferreira (1927-1996)

Director da revista Colóquio/Letras : 1984-1996

David Mourão-Ferreira nasceu em Lisboa. Concluiu os estudos secundários no Colégio Moderno, dirigido à época por João Soares, embora tivesse frequentado o ensino particular nos primeiros anos do liceu, tendo como professor Teófilo de Oliveira Júnior, personalidade que muito o marcaria. Inscreveu-se no curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras em 1945, foi aluno de Hernâni Cidade e Jacinto do Prado Coelho – de quem viria a ser sucessor na direcção da revista – e licenciou-se em 1951 com a tese Três Coordenadas na Poesia de Sá de Miranda. De 1952 a 1957 leccionou no ensino secundário, sendo neste último ano contratado como assistente da Faculdade de Letras, onde organizou e regeu, até 1963, a cadeira de Teoria da Literatura, então recentemente criada. Naquela data foi-lhe rescindido o contrato de assistente e passou a dar aulas no Instituto Superior de Línguas e Administração, trabalhando simultaneamente na Emissora Nacional (foi autor e apresentador do programa «Música e Poesia»), e na Rádio Televisão Portuguesa (autor e apresentador da rubrica «Hospital das Letras»), com a qual colaborara praticamente desde o início das suas emissões. Em 1965, por ter protestado contra o encerramento forçado da Sociedade Portuguesa de Escritores, viu-se afastado destes dois órgão de comunicação e passou a trabalhar como consultor literário e secretário da Sociedade Portuguesa de Autores, onde se manteve em funções até 1974. Apesar de proposto, em 1967, e por unanimidade, pelo Conselho Escolar da Faculdade de Letras de Lisboa, para nela voltar a leccionar, só regressa ao ensino universitário em 1970, sendo-lhe aí sucessivamente concedidos os graus de professor auxiliar convidado, de professor extraordinário (1975) e, a partir de 1990, de catedrático convidado. Depois de 25 de Abril de 1974, foi director do diário A Capital (1974-74), director-adjunto de O Dia (1975-76), por duas vezes Secretário de Estado da Cultura (1976-78 e 1978-79), ingressando, em 1981, nos quadros da Fundação Calouste Gulbenkian, como director do Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas, cargo que ocuparia até à morte, em 1996, bem como, a partir de 1984, a direcção do Boletim Cultural daquele serviço e da revista Colóquio/Letras.

David Mourão-Ferreira participou, em 1969, em Parma, na fundação da Associação Internacional de Críticos Literários, cuja comissão executiva passou a integrar, sendo vice-presidente dessa mesma Associação entre 1984 e 1992. Foi ainda presidente da Associação Portuguesa de Escritores (1984-86), do Pen Club Português (1991), sócio da Academia das Ciências de Lisboa (a partir de 1974), sócio-correspondente da Academia Brasileira de Letras e membro titular da Académie Européenne de Paris. Condecorado pelo governo francês como Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres (1973), foram-lhe atribuídas em 1976 a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco pelo Governo brasileiro e em 1996 a Grã-Cruz de Santiago de Espada pelo governo português.

Pode dizer-se que a vida de David Mourão-Ferreira se estruturou quase inteiramente em torno de uma intimação literária bem cedo pressentida e revelada. Publica as primeiras poesias aos 18 anos, na Seara Nova, de que seu pai era activo colaborador, datando de 1946 o primeiros ensaio que julgou digno de incluir em livro. Na década de 50 revelar-se-á plenamente como poeta, crítico, ensaísta, tradutor, prosador e dramaturgo, sendo, entre 1950 e 54, um dos directores de Távola Redonda e integrando, em 1956, o corpo redactorial da revista Graal. Publica para cima de meia centena de artigos de crítica no Diário Popular (1954-60); inicia uma colaboração regular na página literária do Diário de Notícias que se há-de prolongar até meados dos anos 70, e escreve a maioria das entradas de sua autoria para o Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho. David Mourão-Ferreira inicia nesta década a edição, em livro, daquilo que pode ser considerado o primeiro ciclo da sua produção de escritor essencialmente polígrafo: enquanto poeta dele farão parte A Secreta Viagem, Tempestade de Verão, Os Quatro Cantos do Tempo e Infinito Pessoal; como ficcionista, Gaivotas em Terra; o ensaísta (que em 1960 já terá dado à estampa para cima de 150 artigos) participa nesse ciclo com Vinte Poetas Contemporâneos e Motim Literário; o dramaturgo publica Contrabando na revista Graal. Há visíveis laços entre a produção poética e a de ficção, sobretudo entre Os Quatro Cantos do Tempo e Gaivotas em Terra: a sequência das estações do ano (e da vida) presidem à organização de ambos, ao poeta que se quer moderno em moldes clássicos corresponde o prosador «realista», mas em experimentação de pontos de vista narrativos, e a um atributo a que, na poesia, se pode chamar poder alusivo, responde na prosa um insidioso sentido do mistério a desprender-se do quotidiano lisboeta. Em Vinte Poetas Contemporâneos e Motim Literário, David olha criticamente alguns dos seus contemporâneos poetas e prosadores, debruça-se sobre aquela geração de que combativamente é herdeiro (a da Presença), sobre alguns poetas que sempre prezará como Homem de Mello, Cabral do Nascimento e Armindo Rodrigues, publicando no segundo dos volumes um importante texto sobre Teoria da Literatura, que assinalara a sua estreia, em termos teóricos, na Colóquio.

O segundo ciclo editorial de Mourão-Ferreira desenha-se em torno de dois livros de poesia — Do Tempo ao Coração, Matura Idade —, um livro de contos — Os Amantes — um livro de crónicas — Discurso Directo — e uma obra de divulgação e tradução de poesia — Imagens da Poesia Europeia. Em termos poéticos, trata-se de uma revolução temática e formal, pela inclusão que se diria «caleidoscópica» de materiais carreados de outras culturas, de outros lugares, de outros tempos, que o afirmam decididamente como poeta da cultura europeia, da história do Ocidente transfigurada no seu canto, agora mais empenhado na metamorfose do tempo em escrita do que na dilaceração provocada pela sua passagem. Um aparentado sentido do onírico e do fantástico informa Os Amantes e, de certa forma, outro dos seus livros de contos, As Quatro Estações, de 1980. De 1966 é Hospital das Letras, o livro de ensaios de mais vasto arco temporal, de Sá de Miranda a Natércia Freire, e onde David se demora em autores sobre quem escreveu páginas decisivas: dos portugueses, Garrett, Cesário Verde, Sá-Carneiro, Pessoa, Almada e Vitorino Nemésio; dos brasileiros, Cecília Meireles e Vinicius de Moraes.

A revolução do 25 de Abril de 1974 marcou profundamente a vida de David, que exerceu funções governativas por duas vezes e viu reconhecido o seu estatuto de professor invulgarmente dotado. Da sua acção como secretário de Estado da Cultura restam, pelo menos, testemunhos escritos; da sua reacção política restam sintomaticamente dois títulos de livros: Sobre Viventes e Lâmpadas no Escuro. Um certo espírito anticanónico, o gosto pelo diverso, e, sobretudo, o direito ao diverso estão na base de ensaios dedicados por exemplo a Montherlant, a Colette, a António Feliciano de Castilho, a Eugénio de Castro, a Tomaz de Figueiredo, a Teixeira de Queirós, a Afonso Lopes Vieira, a João de Barros ou a Jaime Cortesão.

Entre 1980 e 1989 Mourão-Ferreira procede, na poesia, a uma certa «desaceleração» de um barroco a raiar quase o obscuro em Matura Idade, publicando Órfico Ofício, Os Ramos Os Remos e O Corpo Iluminado — livros nos quais se, por um lado, exacerba o pendor erótico do seu canto, a tentativa de alcançar a «eternidade instantânea» do enlace dos corpos, por outro, publica uma série de «romances» em redondilha menor onde rememora lugares, sons e imagens, históricas e pessoais. Três deles constituem um movimento de retorno aos anos 40 da sua adolescência, aos anos 30 da sua infância, até mesmo ao dia do seu próprio nascimento e talvez prenunciem o fecho de uma Obra Poética (recolhida em 1988) que o autor organizou simetricamente à volta do Cancioneiro de Natal, onde comunicam o sagrado e o profano, os vivos e os mortos, os antepassados e os vindouros. Neste terceiro ciclo da sua vida literária, incluem-se ainda o romance Um Amor Feliz — e desde a adolescência que David escrevia romances — um livro de crónicas e críticas, Os Ossos do Ofício e uma recolha de ensaios, Sob o Mesmo Tecto, onde comparecem algumas das suas sombras tutelares: M. Gomes-Teixeira, António Sérgio, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Almada, Vitorino Nemésio e José Rodrigues Miguéis. Nesta fase final, o movimento de recolha é ainda o que conduz a dois livros de ensaios — Tópicos Recuperados e Terraço Aberto —; o de recolhimento à publicação de alguns ambíguos auto-retratos: para além do que se joga em Um Amor Feliz, os de Duas Histórias de Lisboa e o de Jogo de Espelhos

David Mourão-Ferreira publicou para cima de 350 artigos de ensaio e crítica literária em mais de 50 revistas e jornais, com especial incidência em Távola Redonda (1950-54) e nos suplementos literários do Diário de Notícias (1954-81), do Diário Popular (1954-60) e de A Capital (1970-74). Colaborador regular de Colóquio – Revista de Artes e Letras (com poesia publicada nos nºs 22 e 29 e ensaio nos nºs 11, 29, 42 e 59, respectivamente sobre problemas teóricos da crítica literária, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio e Tomaz de Figueiredo), estreia-se no nº 2 da Colóquio/Letras publicando dois sonetos e escolhe a revista para publicar poemas marcantes como «Testamento Primeiro» (nº 23), «Axis Mundi» (n.º 36), "Dos Anos Trinta» (n.º 66) ou ensaios especialmente cuidados como aqueles dedicados a M. Teixeira-Gomes (nº 24), Thomas Mann (nº 27), Miguel Ângelo (nº 29), Rilke (nº 31) e Miguel Torga (n.º 43).

Convidado para suceder a Jacinto do Prado Coelho na direcção da revista, ocupa o cargo entre 1984 e 1996, ano da sua morte. Durante os anos em que dirigiu a Colóquio/Letras, esta sofreu uma evolução no sentido da publicação de números temáticos ? na linha das «Homenagens» que vinha sendo seguida desde o início. O primeiro desses volumes – número 85, de Maio de 1985 – foi integralmente destinado a comemorar o centenário do nascimento de Aquilino Ribeiro, seguindo-se-lhe números dedicados a Fernando Pessoa (88), Cesário Verde (93), Mário de Sá-Carneiro (177/8), Camilo Castelo Branco (119), Antero de Quental (123/4), António Nobre (127/8), Irene Lisboa (131) e à literatura galega (137/9).

Entretanto, David continuou a publicar nas páginas de Colóquio/Letras: poesia — «Romance de Ouro Preto» (nº 94), «Romance dos Anos Quarenta» (n.º 100) e as importantíssimas «Rime Petrose» (135/136), ainda hoje não recolhidas em livro); tradução de poesia (Rilke, nº 120, Valéry, nº 135/6); ensaio (sobre Jaime Cortesão, nº 83, Aquilino Ribeiro, nºs 85 e 115/116, Cesário Verde, nºs 93 e 135/136, Vitorino Nemésio, nº102, Gabriele D’Annunzio, nº113/114, Mário de Sá-Carneiro, nº117/118, alguns deles inéditos em livro), notas e comentários e recensões.

Muitas das obras de David foram analisadas nas páginas quer da Colóquio — Revista de Artes e Letras (nºs 3, 9, 21, 35, 46, 48) quer nas da Colóquio/Letras (a poesia nos nºs 17, 37, 61, 63, 65, 90, 107, 140/141; a ficção nos nºs 24, 64, 97 e 100; o ensaios nos nºs 39, 51, 60, 109, 113/114, 132/133; Jogo de Espelhos é estudado no nº 135/136 e as antologias Portugal - A Terra e o Homem nos nºs 51 e 63). Depois da sua morte foi-lhe dedicado um número monográfico (Infinito Pessoal, nº 145/6) e a revista editou em Vozes da Poesia Europeia (nºs 163/5) e Imagens da Poesia Europeia (nºs 166/9) respectivamente as suas traduções de poesia e o guião do programa televisivo de sua autoria com o mesmo título. 

Obra

Poesia: A Secreta Viagem (1950), Tempestade de Verão (1954), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), Infinito Pessoal (1962), In Memoriam Memoriae (1962), Do Tempo ao Coração (1966), Cancioneiro de Natal, (1971), Matura Idade (1973), Entre a Sombra e o Corpo (1980), Ode à Música (1980), À Guitarra e à Viola in Obra Poética (1980) Órfico Ofício in Obra Poética (1980), Os Ramos Os Remos (1985), O Corpo Iluminado (1987), Obra Poética 1948-1988 (1988), No Veio do Cristal in Obra Poética 1948-1988 (1988), Lisboa Luzes e Sombras (1992), Música de Cama (1994).
Ficção: Gaivotas em Terra (1959), Os Amantes (1968), Os Amantes e Outros Contos (1974), As Quatro Estações (1980), Um Amor Feliz (1986), Duas Histórias de Lisboa (1987). Teatro: Contrabando (1956), O Irmão (1965).
Ensaio, Crítica, Crónica: Vinte Poetas Contemporâneos (1960), Aspectos da Obra de Manuel Teixeira-Gomes (1961), Motim Literário (1962), Hospital das Letras (1966), Discurso Directo (1969), Tópicos de Crítica e de História Literária (1969), Sobre Viventes (1976), Presença da “Presença” (1977), Lâmpadas no Escuro (1979), O Essencial sobre Vitorino Nemésio (1987), Nos Passos de Pessoa (1988), Marguerite Yourcenar: Retrato de Uma Voz (1988), Os Ócios do Ofício (1989), Sob o Mesmo Tecto (1989), Tópicos Recuperados (1992), Elogio Académico de Vitorino Nemésio (1992), Evocação de Sebastião da Gama (1993), Magia Palavra Corpo (1993). Divulgação e Tradução de Poesia: Imagens da Poesia Europeia — Vol. I (Grécia, Roma, Os Séculos Obscuros, 1972), Vozes da Poesia Europeia I, II e III (Colóquio-Letras, nº 163/5, 2003) Imagens da Poesia Europeia I e II (Colóquio-Letras, nº 166/9, 2004); Vária: Jogo de Espelhos — Reflexos para um Auto-Retrato (1993).

© Fundação Calouste Gulbenkian, 2006